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Estudo do livro Nosso Lar - Capitulo 1 - Nas Zonas Inferiores

NAS ZONAS INFERIORES


Eu guardava a impressão de haver perdido a ideia de tempo. A noção de espaço esvaíra-se-me de há muito.

Estava convicto de não mais pertencer ao número dos encarnados no mundo e, no entanto, meus pulmões respiravam a longos haustos.

Desde quando me tornara joguete de forças irresistíveis? Impossível esclarecer.

Sentia-me, na verdade, amargurado duende nas grades escuras do horror. Cabelos eriçados, coração aos saltos, medo terrível senhoreando-me, muita vez gritei como louco, implorei piedade e clamei contra o doloroso desânimo que me subjugava o espírito; mas, quando o silêncio implacável não me absorvia a voz estentórica, lamentos mais comovedores, que os meus, respondiam-me aos clamores. Outras vezes gargalhadas sinistras rasgavam a quietude ambiente. Algum companheiro desconhecido
estaria, a meu ver, prisioneiro da loucura. Formas diabólicas, rostos alvares, expressões animalescas surgiam, de quando em quando, agravando-me o assombro. A paisagem, quando não totalmente escura, parecia banhada de luz alvacenta, como que amortalhada em neblina espessa, que os raios de Sol aquecessem de muito longe.

E a estranha viagem prosseguia... Com que fim? Quem o poderia dizer? Apenas sabia que fugia sempre... O medo me impelia de roldão. Onde o lar, a esposa, os filhos? Perdera toda a noção de rumo. O receio do ignoto e o pavor da treva absorviam-me todas as faculdades de raciocínio, logo que me desprendera dos últimos laços físicos, em pleno sepulcro!

Atormentava-me a consciência: preferiria a ausência total da razão, o não-ser.

De início, as lágrimas lavavam-me incessantemente o rosto e apenas, em minutos raros, felicitava-me a bênção do sono. Interrompia-se, porém, bruscamente, a sensação de alívio. Seres monstruosos acordavam-me, irônicos; era imprescindível fugir deles.

Reconhecia, agora, a esfera diferente a erguer-se da poalha do mundo e, todavia, era tarde. Pensamentos angustiosos atritavam-me o cérebro. Mal delineava projetos de solução, incidentes numerosos impeliam-me a considerações estonteantes. Em momento algum, o problema religioso surgiu tão profundo a meus olhos. Os princípios puramente filosóficos, políticos e científicos, figuravam-se-me agora extremamente secundários para a vida humana. Significavam, a meu ver, valioso patrimônio nos planos da Terra, mas urgia reconhecer que a humanidade não se constitui de gerações transitórias e sim de Espíritos eternos, a caminho de gloriosa destinação. Verificava que alguma coisa permanece acima de toda cogitação meramente intelectual. Esse algo é a fé, manifestação divina ao homem. Semelhante análise surgia, contudo, tardiamente. De fato, conhecia as letras do Velho Testamento e muita vez folheara o Evangelho; entretanto, era forçoso reconhecer que nunca procurara as letras sagradas com a luz do coração. Identificava-as através da crítica de escritores menos afeitos ao sentimento e à consciência, ou em pleno desacordo com as verdades essenciais. Noutras ocasiões, interpretava-as com o sacerdócio organizado,sem sair jamais do círculo de contradições, onde estacionara voluntariamente.

Em verdade, não fora um criminoso, no meu próprio conceito. A filosofia do imediatismo, porém, absorvera-me. A existência terrestre, que a morte transformara, não fora assinalada de lances diferentes da craveira comum.

Filho de pais talvez excessivamente generosos, conquistara meus títulos universitários sem maior sacrifício, compartilhara os vícios da mocidade do meu tempo, organizara o lar, conseguira filhos, perseguira situações estáveis que garantissem a tranquilidade econômica do meu grupo familiar, mas, examinando atentamente a mim mesmo, algo me fazia experimentar a noção de tempo perdido, com a silenciosa acusação da consciência. Habitara a Terra, gozara-lhe os bens, colhera as bênçãos da vida, mas não lhe retribuíra ceitil do débito enorme. Tivera pais, cuja generosidade e sacrifícios por mim nunca avaliei; esposa e filhos que prendera, ferozmente, nas teias rijas do egoísmo destruidor. Possuíra um lar que fechei a todos os que palmilhavam o deserto da angústia. Deliciara-me com os júbilos da família, esquecido de estender essa benção divina à imensa família humana, surdo a comezinhos deveres de fraternidade.

Enfim, como a flor de estufa, não suportava agora o clima das realidades eternas. Não desenvolvera os germes divinos que o Senhor da Vida colocara em minhalma. Sufocara-os, criminosamente, no desejo incontido de bem estar. Não adestrara órgãos para a vida nova. Era justo, pois, que aí despertasse à maneira de aleijado que, restituído ao rio infinito da eternidade, não pudesse acompanhar senão compulsoriamente a carreira incessante das águas; ou como mendigo infeliz, que, exausto em pleno deserto, perambula à mercê de impetuosos tufões.

Oh! amigos da Terra! quantos de vós podereis evitar o caminho da amargura com o preparo dos campos interiores do coração? Acendei vossas luzes antes de atravessar a grande sombra. Buscai a verdade, antes que a verdade vos surpreenda. Suai agora para não chorardes depois.

Considerações



André Luiz inicia o capítulo primeiro afirmando que guardava a impressão de haver perdido a ideia de tempo e a noção de espaço. Essas são sensações comuns do fenômeno que os Espíritos Superiores vão denominar na questão 163, em O Livro dos Espíritos, de "perturbação".  As suas circunstâncias variam de acordo com as características individuais e, principalmente, com o gênero de morte. Esse estágio ocorre imediatamente à separação da alma e do corpo. Seus efeitos podem durar por tempo indeterminado, variando de algumas horas a alguns anos, a depender da elevação de cada um. 

No Livro O Céu e o Inferno, segunda parte, capítulo I - O Passamento, o codificador afirma que "à proporção que se liberta, a alma encontra-se numa situação comparável a de um homem que desperta de profundo sono; as ideias são confusas, vagas, incertas; a vista apenas distingue como que através de um nevoeiro, mas pouco a pouco se aclara, desperta-se-lhe a memória e o conhecimento de si mesmo".  A perturbação para o homem de bem, que compreende a sua situação e permanece sereno, nada tem de sofrimento, no entanto, para aquele cuja consciência não se encontra em paz, se traduz por  aflição e desespero, que se agrava à medida que toma ciência da sua condição.

Perceptível que André Luiz, reflexo de todos nós, passou por esse processo da maneira mais difícil, pois à medida que tornavam-se claras as suas ideias, seu desespero aumentava, chegando ao ponto daquela condição desequilibrá-lo quase por completo, momentos em que ele desejava "a ausência total da razão, o não ser".  

Ao longo do estudo dos primeiros capítulos de "Nosso Lar" aprenderemos que essa transição entre a vida corporal e a vida espiritual não é um processo meramente intelectual. Não basta saber é preciso sentir. Imprescindível para isso, quebrar os grilhões mentais que nos prendem aos condicionamentos materiais, para que a fé, que é a "manifestação divina ao homem" possa nos guiar na trajetória da vida. 

As convicções filosóficas, políticas e científicas, de acordo o autor, quando da perspectiva do Espírito eterno, são "extremamente secundária para a vida humana" . Em sua experiência, relata que conhecia de fato as Escrituras e tivera contato com o Evangelho, porém reconhecia quanto as questões religiosas que não as procurava com a luz do coração. Afirma ainda que, na sua concepção, não fora um criminoso, porém deixara absorver-se pelo imediatismo, algo não muito diferente do que acontece com a maioria de nós.

Ele se compara a uma flor de estufa, que não suportou o clima das realidades eternas, por não ter desenvolvido em si os germes divinos, que tinha sufocado criminosamente, no desejo do bem estar. Ao contato com estas reflexões, impossível não se sentir constrangido a também analisar a própria existência.

De que maneira conduzimos a nossa vida, as relações afetivas e sociais? Compartilhamos adequadamente as bençãos divinas? Estamos realmente acordados para as realidades da alma imortal? São muitas perguntas, mas temos que nos desafiar todos os dias a respondê-las, para não esquecermos dos nossos verdadeiros compromissos.

Entre relatos e reflexões, o capítulo é encerrado com um conselho do amigo espiritual que nos conclama a buscar a verdade através do trabalho e do amor.
"Oh! amigos da Terra! quantos de vós podereis evitar o caminho da amargura com o preparo dos campos interiores do coração? Acendei vossas luzes antes de atravessar a grande sombra. Buscai a verdade, antes que a verdade vos surpreenda. Suai agora para não chorardes depois."
E assim interrompemos nossas considerações. O leitor amigo pode está pensando porque não comentamos aspectos relacionados ao local onde André Luiz se encontra, é que o próprio autor abordar o assunto de maneira mais clara e específica no capítulo 12 (https://estudeviva.blogspot.com.br/2016/03/estudo-do-livro-nosso-lar-capitulo-12-o.html). 

Grande abraço,


Estude e viva!!!! 



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